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Os sabores do Pico 

 

 

Nunca tal se constou.

Que o tempo está a mudar, já ninguém duvida, mesmo os mais desatentos, agora que essas transformações meteorológicas atinjam tão fortemente o crescimento de sementeiras e plantios, é que não passaria pela cabeça dos mais antigos, habituados a vindimar em meados de Setembro.

Este ano, porém, aqui na Ponta da Ilha, já houve quem, ao levantar das uvas, tivesse de apanhá-las para não as perder, dado o seu adiantado estado de maturação.

Eu, por mim, pequeno proprietário com  meia dúzia de currais de vinha de cheiro, trabalhadas pelo Manuel Raulino, vou-me dar ao trabalho de vindimar por estes dias, desde que a vinha esteja seca das últimas chuvadas.  Enquanto aqui estou, gosto de transformar-me em “Jacinto rural”, a personagem de Eça que me encantou nos tempos de juventude. Aproxima-me da pedra roliça dos currais de vinha, dos milheirais crescidos, mesclados de grandes mogangos pintados de amarelo torrado, das silvas com amoras maduras, das faias e dos incensos, dos pássaros que acordam as manhãs, muitos antes do nascer do sol que se vai afastando, cada vez mais, da Ponta do Topo.

Não me canso de repetir a afirmação de Raúl Brandão: “A ilha do Pico cheira” pois esta é uma das suas maiores atrações.

Volta a chover. Lá fora, ao relento da noite, ficaram as garrafas que ontem, enchi com Angelica do ano passado. É a minha única produção, pois ninguém faz vinho de cheiro com 50 litros de mosto.

A Angelica passou a ser a minha especialidade. Quatro litros de mosto, um de álcool e temos uma bebida agradável, de baixa graduação, para oferecer aos amigos na adega, juntamente com biscoitos, massa sovada ou bolo de véspera do Espírito Santo conservados na frisa.

Tenho um amigo – o Manuel Rodrigues – que já não passa sem esse remédio d'alma que um dia lhe ofereci. Engarrafou o meu produto com rótulo de origem e oferece-o aos amigos, fresquinho. Quando se esgota a Angelica, solicita-me nova receita para que o “doente” não sinta falta do “medicamento”.

Um dia destes, numa adega da vizinhança, aprendi que a aguardente do Pico também tem seus segredos.

O Celestino Freitas, ex-presidente da Junta, explicou-me que a aguardente de bagaço pode ter outros gostos agradáveis e suaves: a uva, amora, pêssego, nêspera, medronho, tangerina, limão, groselha, etc. Basta juntar-lhe uma quantidade suficiente para tomar o sabor dos frutos, um pouco de açúcar, a gosto, e aí está mais uma especialidade desta ilha, tão boa como um licor de marca ou um whisky velho. O Álvaro Soares deu-me a provar aguardente de uva, velha de anos. O álcool tinha desaparecido e ficou um licor divinal.

Quem aqui vive não dá grande importância a estas particularidades, mas nós, urbanos, que procurámos na cidade a satisfação de sonhos de melhor vida, constatamos, tarde e a más horas, que a qualidade de vida não se faz apenas de salários bem remunerados, de projeção pessoal, da satisfação de necessidades básicas na saúde, na educação e no consumo.

A vida nas zonas rurais tem componentes que resistem à estratificação urbana, ao individualismo, ao salve-se-quem-puder para tudo ganhar, sem olhar a meios.

O espírito comunitário que faz da solidariedade e da partilha práticas  eloquentes de raiz humano-cristã, manifesta-se na alegria do bailar a chamarrita nas celebrações mais festivas, no oferecer um prato de figos ou de uva, umas maçarocas de milho ou uns ovos das galinhas “que graças a Deus põem tanto que não se consegue comer”.

É nas localidades rurais, que se dá bom dia ou boa tarde, várias vezes ao dia, pois todos se conhecem, que se sofre com quem sofre, e se chora por ver partir um vizinho, um amigo  seja para a América em fim de curta visita, seja para a eternidade.

Nada se passa que não se comente, porque todos se sentem parte integrante do presente e do futuro da localidade. A crise do país, essa passa ao largo, pertence a um mundo distante.

“Esta terra e esta gente” tem na sua história secular períodos de dificuldades mil que a fez partir para brasís e américas, em barcos à vela, navios a vapor, aviões de hélice e a jato.  Sempre com a terra no coração e na alma, a Angelica e a Aguardente de sabores no paladar.

Aqui, estou em casa.

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